domingo, 16 de novembro de 2008

Comentários ou respostas?

O Livro dos Espíritos é composto de uma série de diálogos e de comentários colocados ao final de algum destes. A primeira vista, pode-se dizer que as perguntas foram formuladas por Kardec, as respostas foram dadas pelos espíritos e os comentários elaborados por Kardec. Mas será que existe aí uma delimitação bem definida? Ou existe um grau de liberdade na responsabilidade de cada um?

Do tópico anterior sobre a fusão das respostas pudemos perceber que Kardec teve uma participação ativa na seleção e redação das respostas atribuídas aos espíritos. Mas, e quantos aos comentários? Teriam os espíritos participação neles? De acordo com o próprio Kardec, sim.

Como vimos em Prolegômenos tanto as respostas quanto os comentários provêm dos diálogos com os espíritos. Haveria aí uma certa cumplicidade na redação tanto de um quanto de outro. Vejam como Kardec a explicou nas notas da primeira edição:

"Conquanto o assunto versado em cada coluna seja o mesmo, encerram às vezes uma e outra pensamentos especiais que, quando não resultam propriamente de perguntas diretas, não constituem menos o fruto das lições dadas pelos Espíritos, vista como não há nenhuma que não seja expressão do pensamento deles."

Seria possível, então, que Kardec transformasse seus comentários em respostas formalmente atribuídas aos espíritos? É o que veremos nos seguintes exemplos (de mapeamentos).

Neste primeiro exemplo observe que a terceira frase dos comentários de Kardec da primeira edição transformou-se na parte inicial da resposta dos espíritos na segunda edição.

Primeira edição
178. Pode alguém livrar-se da influência de Espíritos que convidam ao Mal?
"Sim, pois eles só se apegam àqueles cujas intenções os solicitam."
__ Os espíritos, cuja influência é repelida pelo querer oposto, renunciam a suas tentativas?
"Que queres fiquem fazendo? Quando não há nada que fazer, cedem o lugar; contudo ficam espreitando a hora favorável como o gato espreita o ratinho."
Os espíritos impuros exercem portanto sua dominação sobre o homem apenas quando solicitados por humanos desejos, pois se apegam só aos que os escutam e fogem daqueles que os repelem.
Quando não vêem presa nenhuma, êles deixam o campo para os bons espíritos, mas ficam espiando atento a hora propícia a seus intentos.
Fazendo o bem e colocando toda a nossa confiança em Deus, repeliremos a influência dos espíritos inferiores e aniquilaremos o império que desejam ter sobre nós.

Segunda edição
469. Por que meio podemos neutralizar a influência dos maus Espíritos?
"Fazendo o bem e colocando toda a vossa confiança em Deus, repelireis a influência dos Espíritos inferiores e aniquilareis o império que desejam ter sobre vós. Guardai-vos de atender às sugestões dos Espíritos que vos suscitam maus pensamentos, que sopram a discórdia entre vós e que vos excitam todas as más paixões. Desconfiai especialmente dos que vos exaltam o orgulho porque vos tomam por vossa fraqueza. Essa a razão por que Jesus, na oração dominical, vos ensinou a dizer: 'Senhor! Não nos deixes sucumbir à tentação, mas livra-nos do mal'."

Uma observação ainda mais atenta mostrará o cuidado com que Kardec alterou os pronomes nesta frase (destacada em vermelho). Quando usada nos comentários Kardec optou pelo pronome nós e quando usada na resposta ele optou pelo vós. Isto demonstra claramente que não se trata de erros de edição ou enganos pessoais, mas sim de uma consciente transformação de um comentário elaborado por Kardec (a partir dos diálogos) em uma resposta atribuída aos espíritos.

No próximo mapeamento, percebemos a simples aglutinação do comentário ao corpo da resposta do espírito. Vejam:

Primeira edição
339. Deus, dando ao homem a necessidade de viver, fornece-lhe sempre os meios?
"Sim, e se não os encontra é porque não os compreende."
Deus não poderia dar ao homem a necessidade de viver sem dar-lhe os meios. Por isso faz a terra produzir para fornecer o necessário a todos os seus habitantes, porque só o necessário é útil; o supérfluo nunca o é.

Segunda edição
704. Deus, dando ao homem a necessidade de viver, fornece-lhe sempre os meios?
"Sim, e se não os encontra é porque não os compreende. Deus não poderia dar ao homem a necessidade de viver sem dar-lhe os meios, por isso faz a terra produzir para fornecer o necessário a todos os seus habitantes, porque só o necessário é útil; o supérfluo nunca o é."

E, finalmente, no próximo mapeamento Kardec substitui toda a resposta do espírito pelo seu comentário.

Primeira edição
359. A necessidade de destruição existirá sempre entre os homens?
"Não; ela cessará com um estado físico e moral mais apurado."
__ Nos mundos em que o seu organismo é mais apurado, os seres vivos sentem necessidade de alimentação?
"Sim, mas seus alimentos se acham de acordo com sua natureza. Esses alimentos não seriam bastante substanciais para vossos estômagos rudes, assim como não poderiam eles digerir as vossas."
A necessidade de destruição enfraquece entre os homens, à medida que o espírito se sobrepõe à matéria. A partir daqui vemos o horror à destruição seguir o desenvolvimento intelectual e moral.

Segunda edição
733. A necessidade da destruição existirá sempre entre os homens sobre a Terra?
"A necessidade de destruição enfraquece entre os homens, à medida que o Espírito se sobrepõe à matéria, e é por isso que vedes o horror à destruição seguir o desenvolvimento intelectual e moral."

Neste último exemplo observamos ainda a alteração da conjugação do verbo ver de vemos para vedes para ficar de acordo com a atribuição dada às respostas e aos comentários.

E qual seria a motivação de Kardec para substituir a resposta elaborada pelos espíritos pela sua própria? É praticamente impossível saber ao certo, mas percebe-se que Kardec opta sempre pelas respostas mais trabalhadas numa clara demonstração de preocupação com o leitor. O seu perfil de educador vem sustentar esta hipótese, além da plena consciência e responsabilidade sobre a grave missão que lhe foi atribuída pelos próprios espíritos.

Apenas para constar como exemplos ainda temos o mapeamento entre o diálogo 443 da primeira edição e o 876 da segunda edição. Aqui, a resposta da pergunta na segunda edição é formada pelos dois últimos comentários do diálogo da primeira.

3 comentários:

Leopoldo Daré disse...

É isto aí Vital. O Kardec aumenta seu domínio sobre o conteúdo e este seu tópico de análise, acredito, pode entrar na nossa lista de comprovações da tese: a segunda edição crescente em estruturação pedagógica e perde em documentação da metodologia científica.

abraços

Leo

Claudia Navarro disse...

Caros Vital e Leo. Passei por aqui para parabenizá-los de todo o meu coração... Essa iniciativa é fantástica! Eu sempre percebi a relevância dos comentários de Kardec, e sempre entendi que ele trabalhou com os espíritos da Codificação em regime de "parceria", e não numa posição de aceitação passiva dos conteúdos "ditados". Esse blog é altamente estimulante, nos faz aumentar o gosto pelos estudos espíritas. Continuem...!!!!

Vital Cruvinel disse...

Exatamente, Leo! E o nosso trabalho é redescobrir esta metodologia... vamos em frente!

Olá Claudia! Muito obrigado pelo estímulo! É muito bom saber que nosso trabalho está empolgando. Abraço!