quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Fusão de respostas

O mestre Kardec deu uma pista muito importante sobre a forma lapidar com que construía sua obra. A partir de suas anotações pessoais reproduzidas em Obras Póstumas podemos extrair um resumo deste processo de construção:

"Não me contentei, entretanto, com essa verificação; os Espíritos assim mo haviam recomendado. Tendo-me as circunstâncias posto em relação com outros médiuns, sempre que se apresentava ocasião eu a aproveitava para propor algumas das questões que me pareciam mais espinhosas. Foi assim que mais de dez médiuns prestaram concurso a esse trabalho. Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857."

A partir deste tópico procuraremos demonstrar através de exemplos como este processo de elaboração se deu nos diálogos do Livro dos Espíritos. Alguns dos mais interessantes são as fusões de duas ou mais respostas em uma única resposta. Vamos a eles.

Observem no exemplo abaixo como três respostas (da primeira edição) foram fundidas em uma única resposta (da segunda). Nota: as respostas dos espíritos são as registradas entre aspas conforme a nota explicativa contida após os Prolegômenos.

Primeira edição
17. Todos os globos que circulam no espaço são habitados?
"Sim."
__ Tais mundos são igualmente habitados por seres tão inteligentes como o homem?
"Sim, e o homem da Terra está longe de ser, como crê, o primeiro em inteligência, em bondade e perfeição."
"Todavia, há homens que se crêem muito fortes, que imaginam que somente seu pequeno globo tem o privilégio de abrigar seres racionais. Orgulho e vaidade! Julgam que Deus criou o universo só para eles."
Deus povoou os mundos (...)

Segunda edição
55. Todos os globos que circulam no espaço são habitados?
"Sim, e o homem da Terra está longe de ser, como crê, o primeiro em inteligência, em bondade e perfeição. Todavia, há homens que se crêem muito fortes, que imaginam que somente seu pequeno globo tem o privilégio de abrigar seres racionais. Orgulho e vaidade! Julgam que Deus criou o universo só para eles."
Deus povoou os mundos (...)

É interessante notar ainda, neste exemplo, que as duas respostas à segunda pergunta da primeira edição foram atribuídas à primeira. Ou seja, foi mantida apenas a primeira das duas perguntas. Não sabemos exatamente os propósitos desta fusão e a manutenção apenas da primeira pergunta, mas parece que ela vai de encontro a generalização e homogeneização das idéias.

Quando Kardec exclui a segunda pergunta ele remove a restrição de que todos os mundos deveriam ter seres tão inteligentes quanto o homem. E do jeito que está na segunda edição não se pode chegar a esta conclusão.

No próximo exemplo há a fusão também de três respostas, além de serem levemente modificadas. Vejam:

Primeira edição
135. As condições físicas e morais dos seres vivos, em cada globo, são sempre as mesmas, perpetuamente?
"Não."
__ Todos os globos começaram por estar, como nossa Terra, em estado de inferioridade?
"Sim."
__ A Terra também sofrerá a transformação que já se produziu em outros mundos?
"Certamente. Ela se tornará um paraíso terrestre, quando os homens se tornarem bons."
As condições físicas e morais dos seres vivos não ficam perpetuamente as mesmas em cada globo. Todos os mundos começaram a ser povoados pelas raças inferiores, que se foram aprimorando. É assim que as raças, que hoje povoam a Terra desaparecerão um dia substituídas por seres cada vez mais perfeitos; essas raças transformadas sucederão às atuais, como estas sucederam a outras ainda mais grosseiras.

Segunda edição
185. As condições físicas e morais dos seres vivos, em cada globo, são sempre as mesmas, perpetuamente?
"Não; os mundos também são submetidos à lei do progresso. Todos começaram como o vosso por um estado inferior e a própria Terra sofrerá uma transformação semelhante. Ela se tornará um paraíso terrestre, quando os homens se tornarem bons."
É assim que as raças, que hoje povoam a Terra desaparecerão um dia substituídas por seres cada vez mais perfeitos; essas raças transformadas sucederão às atuais, como estas sucederam a outras ainda mais grosseiras.

Neste exemplo, é interessante como um conjunto de três pares de perguntas e respostas se transformaram em um único par. É certo que a resposta na segunda edição contempla as respostas da primeira, mas perde um pouco da forma como se deu este diálogo.

Uma destas perdas (aliás, um dos propósitos deste trabalho é recuperá-las) foi a objetividade e a forma breve das respostas. Isto se deve provavelmente a particularidade do mecanismo de comunicação que para a primeira edição se valeu da cesta de bico cujo processo era difícil e lento.

Também demonstra que as respostas não são tão literais como muitos supõem. Ainda é preciso ter particular atenção para a entrevista conduzida por kardec. Isto é, muitas das respostas não vieram prontas e acabadas como num ditado espontâneo, mas pelo diálogo proposto de Kardec com os espíritos.

Uma última observação foi a exclusão das primeiras duas frases dos comentários que se tornaram desnecessárias e redundantes após a síntese da resposta na segunda edição.

No próximo exemplo, os dois primeiros pares de perguntas e respostas na primeira edição foi condensado em um único par na segunda edição. E, por sua vez, o terceiro par passou a fazer parte de um outro diálogo.

Primeira edição
173. Os espíritos influem sobre os nossos pensamentos e as nossas ações?
"Sim."
__ De que modo os Espíritos influem em nossas ações?
"Dirigindo o pensamento."
__ Exercem alguma influência sobre os acontecimentos da vida?
"Sim, pois que te aconselham."
Os Espíritos influem em nossos pensamentos e portanto em nossas ações que são conseqüência de nossas idéias; é desta forma que eles podem exercer influência nos acontecimentos da vida material.
A influência dos Espíritos é missão que receberam para dar cumprimento aos desígnios da Providência.

Segunda edição
459. Os espíritos influem sobre os nossos pensamentos e as nossas ações?
"A esse respeito a sua influência é maior do que credes porque, frequentemente, são eles que vos dirigem."

525. Os Espíritos exercem alguma influência sobre os acontecimentos da vida?
"Seguramente, pois que te aconselham."
__ Exercem essa influência por outra forma que não apenas pelos pensamentos que sugerem, isto é, têm ação direta sobre o cumprimento das coisas?
"Sim, mas nunca agem fora das leis da Natureza."

Vale ressaltar que da forma com que Kardec apresentou a nova resposta ele tira o caráter absoluto de que a influência em nossas ações se dá exclusivamente através da direção do pensamento. Isto fica claro, no segundo par de perguntas e respostas do diálogo 525.

Para finalizar apresentamos um caso de inserção de uma resposta no meio de outra. Vejam:

Primeira edição
288. O mal parece algumas vezes ...
"Isso não deixa de ser o Mal ...
__ Por que está o mal na natureza das coisas? Deus não poderia criar a Humanidade em melhores condições?
"Já te dissemos isto: Os Espíritos foram criados inocentes e ignorantes. O homem é feito de matéria e espírito. O corpo é uma veste de que o espírito se cobre a fim de poder educar-se. Se não houvesse montanhas, o homem não poderia compreender que se pode subir e descer, e se não existissem rochas, ele não compreenderia que há corpos duros. É preciso que o Espírito adquira experiência e, para isso, é preciso que ele conheça o bem e o mal. Por isso, há a união do Espírito e do corpo."

297. Uma vez que tudo vem de Deus, os instintos maldosos não são, acaso, também Sua Obra, e por eles o ser deve ficar responsável?
"O ser humano não é uma animal. Deus deixa que o homem escolha o caminho. Tanto pior para ele, se toma o caminho mau: mais longa será sua peregrinação."

Segunda edição
634. Por que está o mal na natureza das coisas? Falo do mal moral. Deus não poderia criar a Humanidade em melhores condições?
"Já te dissemos: os Espíritos foram criados simples e ignorantes (115). Deus deixa que o homem escolha o caminho. Tanto pior para ele, se toma o caminho mau: mais longa será sua peregrinação. Se não houvesse montanhas, o homem não poderia compreender que se pode subir e descer, e se não existissem rochas, ele não compreenderia que há corpos duros. É preciso que o Espírito adquira experiência e, para isso, é preciso que ele conheça o bem e o mal. Por isso, há a união do Espírito e do corpo (119)."

Observem que a resposta do diálogo 297 é inserida no meio da segunda resposta do diálogo 288 da primeira edição para formarem juntas a resposta à pergunta 634 da segunda edição.

Outros exemplos podem ser extraídos dos mapeamentos:

  • 484 da segunda edição com a 184 da primeira,
  • 636 da segunda edição com a 287,
  • 663 da segunda edição com as 317 e 319 da primeira,
  • 777 da segunda edição com as 282 e 393 da primeira,
  • 975 da segunda edição com as 481 e 484 da primeira.

4 comentários:

Dermeval Carinhana Jr. disse...

Caro Vital,

Como sempre, meus parabéns pelo trabalho que, mais do que uma mera curiosidade histórica, vem esclarecer pontos ainda confusos para muitos companheiros espíritas.

Como sugestão, penso que seria muito interessante dar mais destaque para suas conclusões, transcritas abaixo. Um artigo nesse sentido iria muito bem, não?

1- Uma destas perdas (aliás, um dos propósitos deste trabalho é recuperá-las) foi a objetividade e a forma breve das respostas. Isto se deve provavelmente a particularidade do mecanismo de comunicação que para a primeira edição se valeu da cesta de bico cujo processo era difícil e lento.

2- Também demonstra que as respostas não são tão literais como muitos supõem. Ainda é preciso ter particular atenção para a entrevista conduzida por Kardec.

Isto é, muitas das respostas não vieram prontas e acabadas como num ditado espontâneo, mas pelo diálogo proposto de Kardec com os espíritos.

Tais conclusões podem, aparentemente, não representar grandes revelações. Muitos não irão compreendê-las, ou mesmo contestá-las.

Porém, elas encerram a própria essência da metodologia espírita, que trata os espíritos não como seres sobrenaturais, mas sim como pessoas.

Nas palavras mais simples possíveis, ela se resume a ouvir, pensar a respeito e tirar conclusões, independente do nome e do número de entrevistados.

Longe de ser um mecanismo como um telégrafo ou, nas palavras de hoje, um email, a mediunidade está fortemente associada aos processos de comunicação humana.

É o que Kardec defendia e sua análise vem mostrar que, de fato, ele utilizava esse conceito na prática.

Bem, a conversa é longa, mas certamente iremos continuar.

Um forte abraço e espero por novas decodificações!

Dermeval

Vital Cruvinel disse...

Grande Dermeval!

Você tem toda a razão quanto às conclusões. São aparentemente pequenas mas joga muita luz sobre o processo de aquisição do conhecimento espírita.

Pra falar a verdade, estou até me controlando para não descarregar conclusões porque acredito que as avaliações individuais destes exemplos são suficientes para que cada um chegue a suas próprias conclusões. E isto, penso, faz muita diferença.

Mas, num artigo, aí a coisa muda um pouco de figura... é preciso colocar as idéias e defendê-las. Como este trabalho está indo razoavelmente bem, logo a gente começa a escrevê-los.

Bem... é uma grande satisfação ter você acompanhando nosso trabalho.

Abração!

Anônimo disse...

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Rodrigo Melo disse...

Bom Demais!!!