quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

As luzes do Cristianismo

Desde a primeira edição do Livro dos Espíritos o homem Jesus de Nazaré tem sido o modelo e guia para aqueles que procuram se orientar pela nova filosofia que nascia sob a coordenação de Allan Kardec. Porém, Jesus aparecia praticamente desvinculado do mito cristão e do que se convencionou chamar de cristianismo.

Para a segunda edição Kardec procurou aumentar este vínculo introduzindo novas respostas e comentários com o emprego das palavras Cristo e Cristianismo e, algumas vezes, associadas a palavra Espiritismo. Para efeito de comparação temos na primeira edição um total de seis aparições da palavra Cristo e na segunda, um total de trinta e duas.

Em alguns comentários Kardec relacionou explicitamente Cristianismo e Espiritismo. Veja abaixo alguns trechos:

Segunda edição
222. O essencial está em que o ensino dos Espíritos é eminentemente cristão; apóia-se na imortalidade da alma, nas penas e recompensas futuras, na justiça de Deus, no livre-arbítrio do homem, na moral do Cristo. Logo, não é antireligioso.

798. Sua marcha [do Espiritismo], porém, será mais célere que a do Cristianismo, porque o próprio Cristianismo é quem lhe abre o caminho e serve de apoio. O Cristianismo tinha que destruir; o Espiritismo só tem que edificar.

933. Essa consolação ele a encontra no sentimento cristão, que lhe dá a esperança de melhor futuro, e no Espiritismo que lhe dá a certeza desse futuro.

Além de novas respostas que referenciam Cristo, temos também algumas modificações interessantes. Vejam, por exemplo, a apóstrofe 'esclarecida pelas luzes do Cristianismo' inserida na resposta:

Primeira edição
420. Quando a escravidão faz parte dos costumes de um povo, são censuráveis os que dela aproveitam, embora só o façam conformando-se com um uso que lhes parece natural?
"Temos dito várias vezes: o mal é sempre o mal e não há sofisma que faça se torne boa uma ação má. A responsabilidade, porém, do mal é relativa aos meios de que o homem disponha para compreendê-lo."
Aquele que tira proveito da lei da escravidão é sempre culpado de violação da lei da Natureza. Mas, aí, como em tudo, a culpabilidade é relativa. Tendo-se a escravidão introduzido nos costumes de certos povos, possível se tornou que, de boa-fé, o homem se aproveitasse dela como de uma coisa que lhe parecia natural. Entretanto, desde que, mais desenvolvida e sua razão lhe mostrou que o escravo era um seu igual perante Deus, nenhuma desculpa mais ele tem.

Segunda edição
830. Quando a escravidão faz parte dos costumes de um povo, são censuráveis os que dela aproveitam, embora só o façam conformando-se com um uso que lhes parece natural?
"O mal é sempre o mal e não há sofisma que faça se torne boa uma ação má. A responsabilidade, porém, do mal é relativa aos meios de que o homem disponha para compreendê-lo. Aquele que tira proveito da lei da escravidão é sempre culpado de violação da lei da Natureza. Mas, aí, como em tudo, a culpabilidade é relativa. Tendo-se a escravidão introduzido nos costumes de certos povos, possível se tornou que, de boa-fé, o homem se aproveitasse dela como de uma coisa que lhe parecia natural. Entretanto, desde que, mais desenvolvida e, sobretudo, esclarecida pelas luzes do Cristianismo, sua razão lhe mostrou que o escravo era um seu igual perante Deus, nenhuma desculpa mais ele tem."

Vale destacar ainda neste mapeamento a transformação do comentário em resposta. Outro exemplo interessante é a reformulação de uma resposta na qual é incluída a expressão 'caridade cristã'... vejam:

Primeira edição
349. A vida de mortificações ascéticas é meritória?
"Procurai saber a quem ela aproveita e tereis a resposta. Se ela não serve senão a vós e vos impede de fazer o bem, é egoísmo. Privar-se e trabalhar para os outros, eis a verdadeira mortificação."

Segunda edição
721. É meritória, de qualquer ponto de vista, a vida de mortificações ascéticas que desde a mais remota antigüidade teve praticantes no seio de diversos povos?
"Procurai saber a quem ela aproveita e tereis a resposta. Se ela não serve senão para quem a pratica e o impede de fazer o bem, é egoísmo, seja qual for o pretexto com que entendam de colori-la. Privar-se e trabalhar para os outros, eis a verdadeira mortificação, segundo a caridade cristã."

Numa questão de estilo Kardec também troca a palavra 'Jesus' por 'Cristo' em um dos diálogos. Vejam:

Primeira edição
443. (...)
Deus colocou no coração dos homens a verdadeira regra de Justiça pelo desejo de cada um de ver respeitados os seus direitos. Jesus traçou a norma: [Jésus a donné cette règle] Fazei aos outros do modo conto quereríamos que os outros fizessem também a nós mesmos.
Na incerteza de como deva proceder com o seu semelhante, em dada circunstância, cumpre ao homem se perguntar de que modo quereria que se fizesse para ele em igual circunstância: Deus não lhe poderia ter dado um guia mais seguro que a própria consciência.

Segunda edição
876. Posto de parte o direito que a lei humana consagra, qual a base da justiça, segundo a lei natural?
"Disse o Cristo: [Le Christ vous l'a dit] Queira cada um para os outros o que quereria para si mesmo. Deus colocou no coração dos homens a verdadeira regra de justiça pelo desejo de cada um de ver respeitados os seus direitos. Na incerteza de como deva proceder com o seu semelhante, em dada circunstância, cumpre ao homem se perguntar de que modo quereria que se fizesse para ele em igual circunstância: Deus não lhe poderia ter dado um guia mais seguro que a própria consciência."
Efetivamente ...

É também interessante verificar como os comentários do diálogo da primeira edição produziram um novo diálogo com uma nova pergunta e uma nova resposta. E, para finalizar, reproduzimos abaixo a mensagem de Santo Agostionho no final da conclusão do Livro na sua segunda edição:

Segunda edição, Conclusão
"Por bem largo tempo, os homens se têm estraçalhado e anatematizado mutuamente em nome de um Deus de paz e misericórdia, ofendendo-O com semelhante sacrilégio. O Espiritismo é o laço que um dia os unirá, porque lhes mostrará onde está a verdade, onde o erro. Durante muito tempo, porém, ainda haverá escribas e fariseus que O negarão, como negaram o Cristo. Quereis saber sob a influência de que Espíritos estão as diversas seitas que entre si fizeram partilha do mundo? Julgai-o pelas suas obras e pelos seus princípios. Jamais os bons Espíritos foram os instigadores do mal; jamais aconselharam ou legitimaram o assassínio e a violência; jamais estimularam os ódios dos partidos, nem a sede das riquezas e das honras, nem a avidez dos bens da Terra. Os que são bons, humanitários e benevolentes para com todos, esses os Seus prediletos e prediletos de Jesus, porque seguem a estrada que este lhes indicou para chegarem até Ele."

3 comentários:

Leopoldo Daré disse...

Boa tarde Vital.

Você já tem uma conclusão dos motivos deste reforço na discussão sobre Cristo na segunda edição?
Ao mesmo tempo, quais as consequências que você nota com esta maior aproximação com o discurso cristão?
abraços

Leo

Vital Cruvinel disse...

Oi Leo,

Para mim a essência continuou a mesma, ou seja, a moral de Jesus ou a moral cristã permanece como base dos ensinamentos espíritas. Mas é fato que houve este reforço e uma das minhas hipóteses para ele é a de que o público majoritário era ligado ao Cristianismo de alguma forma.

Hoje muitos poderiam dizer que ao associar o Espiritismo ao Cristianismo as 'portas' de acesso a doutrina ficam bloqueadas a pessoas de outras culturas ou religiões não cristãs. Mas, naquela época de nascimento do Espiritismo me parece acertada esta associação uma vez que abriu várias 'portas' e isto pode ter sido determinante para o seu florescimento em outros países, sendo o Brasil o principal deles.

Como consequência natural vejo a não ruptura com o pensamento religioso, ou melhor, a aceitação deste pensamento. E isto me parece estar de acordo com os conceitos de gradualidade e de evolucionismo que orientam a elaboração da nova edição. Ou seja, oferece-se às pessoas aquilo que elas estão prontas a receber.

Abraço!

Leopoldo Daré disse...

ótima análise Vital!
Eu acrescentaria mais uma hipótese para futuras observações: o aumento do comprometimento pedagógico-cultural. Parece-me a primeira edição mais preocupada com a imparcialidade científica, com as coletas dos dados inciais. Na segunda edição agiganta-se o compromisso pedagógico com a transformação moral da humanidade, e o necessário diálogo filosófico com o seu tempo. O compromisso humanitário traz consigo o engajamento cultural.