terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Xavier, de corpo e alma

As mais polêmicas discussões travadas no meio espírita envolvem questões relacionadas ao momento da união da alma ao corpo. Isto porque tal "detalhe" é a base de argumentação a várias questões bioéticas como o direito ao aborto ou o uso de células tronco embrionárias em pesquisas científicas.

Sabemos que o Livro dos Espíritos é a pedra angular do Espiritismo e, por isso, damos um alto valor ao que nele está escrito. E maior será esse valor quanto mais informações tivermos sobre ele.

Sobre o retorno do espírito a vida corporal e, mais especificamente, sobre a união da alma ao corpo não existem muitas respostas na primeira edição do Livro dos Espíritos. Por outro lado, elas eram objetivas e traziam muita informação.

Primeira edição
86. Em que momento a alma se une ao corpo?
"Ao nascimento."
__ Antes do nascimento a criança tem uma alma?
"Não."
__ Como vive então?
"Como as plantas."
A alma ou espírito se une ao corpo no momento em que a criança vê a luz e respira.
Antes do nascimento a criança só tem vida orgânica sem alma. Ela vive como as plantas, tendo apenas o instinto cego de conservação, comum em todos os seres vivos.

Muito provavelmente a intuição de Kardec lhe mostrava que estas respostas estariam entre aquelas que considerou como as mais espinhosas. E, como ele mesmo declara em suas anotações pessoais reproduzidas em Obras Póstumas, para estas ele aproveitava o contato com outros médiuns para confirmá-las.

Foi dessa forma que em 1858 Kardec fez de uma conversa familiar uma bela entrevista a respeito das questões que envolvem o retorno do espírito ao corpo. Esta conversa se deu com o espírito de um médico que tinha falecido há alguns meses e que havia deixado um manuscrito sobre o Magnetismo que, pensava ele, faria uma revolução na ciência.

De acordo com as respostas obtidas nesta conversa, o espírito, que não acreditava em Deus, sofria pelo mal que havia causado na Terra e esperava novas provas para a sua próxima reencarnação. Ainda assim, pela honestidade que as suas respostas aparentavam Kardec procurou extrair o melhor do que este espírito poderia oferecer.

Dentre várias perguntas interessantes que Kardec fez, uma delas é exatamente a mesma pergunta que tinha feito para a compilação da primeira edição do Livro dos Espíritos e que acabamos de observar.

Revista Espírita, março de 1858
O doutor Xavier
24. Em que momento se opera a união da alma e do corpo, na criança?
"Quando a criança respira; como se recebesse a alma com o ar exterior."

Esta resposta vem confirmar a idéia contida na primeira edição do Livro, mas, tempos depois, Kardec a abandona e escreve uma nota logo em seguida desta resposta e uma outra ao final do artigo.

Revista Espírita, março de 1858
O doutor Xavier
Nota. Essa opinião é conseqüência de dogma católico. Com efeito, a Igreja ensina que a alma não pode ser salva senão pelo batismo; ora, como a morte natural intra-uterina é muito freqüente, em que se tornaria essa alma privada, segundo ela, desse único meio de salvação, se ela existia no corpo antes do nascimento? Para ser conseqüente, seria preciso que o batismo tivesse lugar, se não de fato, pelo menos de intenção, desde o instante da concepção.

Nota. A teoria, dada por esse Espírito, sobre o instante da união da alma e do corpo, não é inteiramente exata. A união começa desde a concepção; quer dizer, desde esse momento, o Espírito, sem estar encarnado, liga-se ao corpo por um laço fluídico que vai se apertando, mais e mais, até o nascimento; a encarnação não se completa senão quando a criança respira. (Ver O Livro dos Espíritos, n 344 e seguintes.)

Vamos observar com atenção estas notas... A segunda tem uma informação importante para a sua contextualização: ela foi editada após a publicação da segunda edição do Livro dos Espíritos. Isto se vê pela indicação, no final, dos números dos diálogos relacionados ao tema e esta nota já teria sido incluída em 1861 (*).

Esta observação é importante porque demonstra a preocupação com as informações passadas nos periódicos da Revista Espírita. E também porque mostra que Kardec não se contentou com a confirmação da idéia.

Outra observação interessante a ser feita é que, pela primeira nota, vemos Kardec considerando a influência que as idéias estabelecidas podem ter sobre as comunicações quando declara que 'essa opinião é conseqüência de dogma católico'. De toda forma, Kardec compreendia que o espírito tinha uma visão limitada do processo de união e, assim, destacou que a idéia 'não é inteiramente exata'.

Dirigindo-se ao espírito, Kardec rebate a resposta anterior com uma pergunta semelhante a do diálogo 86 da primeira edição.

Revista Espírita, março de 1858
O doutor Xavier
25. Como explicais, então, a vida intra-uterina?
"Como a planta que vegeta. A criança vive a sua vida animal."

Novamente, a resposta confirma a primeira edição e deixa claro que o espírito está convicto de que não há alma antes do nascimento (ver também a 29). É interessante que esta resposta é aproveitada na segunda edição, mas de forma mais desenvolvida.

Segunda edição
354. Como explicar a vida intra-uterina?
"É aquela da planta que vegeta. A criança vive a vida animal. O homem possui em si a vida animal e a vida vegetal que ele completa, no nascimento, pela vida espiritual."

Logo em seguida Kardec, de forma inteligente, propõe um problema a ser resolvido, a de ser ou não um crime o aborto de um ser que não seria um humano. Esta resposta também foi aproveitada na segunda edição com a adição de um reforço para que não se transgrida a lei de Deus. Note também que a pergunta é modificada para remover a idéia de que a criança não seria um humano.

Revista Espírita, março de 1858
O doutor Xavier
26. Há crime em privar uma criança da vida antes do seu nascimento, uma vez que, antes dessa época, a criança, não tendo alma, não é, de algum modo, um ser humano?
"A mãe, ou qualquer pessoa, cometerá sempre crime tirando a vida à criança antes de nascer, porque está impedindo, à alma, de suportar as provas das quais o corpo deveria ser o instrumento."

Segunda edição
358. O abortamento voluntário é um crime, qualquer que seja a época da concepção?
"Existe sempre crime quando transgredis a lei de Deus. A mãe, ou qualquer pessoa, cometerá sempre crime tirando a vida à criança antes de nascer, porque está impedindo, à alma, de suportar as provas das quais o corpo deveria ser o instrumento."

Preocupado em solucionar todos os problemas, Kardec propõe um outro: a escolha entre a vida da mãe ou do filho em situações de risco. E, de acordo com a idéia de que o espírito do filho não se encontra ligado ao corpo, o comunicante opta, na sua lógica, pelo ser que existe, isto é, que faz parte do mundo corporal. Contudo há uma mudança na ênfase da resposta na nova edição que ficou menos rigorosa.

Revista Espírita, março de 1858
O doutor Xavier
28. No caso em que a vida da mãe estivesse em perigo com o nascimento da criança, há crime em sacrificar a criança para salvar a mãe?
"Não; é preciso sacrificar o ser que não existe ao ser que existe."

Segunda edição
359. No caso em que a vida da mãe estivesse em perigo com o nascimento da criança, há crime em sacrificar a criança para salvar a mãe?
"É preferível sacrificar o ser que não existe ao ser que existe."

Continuando no diálogo com o doutor Xavier encontramos a pergunta sobre a predestinação da alma a um determinado corpo. E é interessante observar como Kardec substituiu a expressão "momento do nascimento" pelo "último momento" para ficar de acordo com a nova proposta, a de que a união é um processo que se inicia na concepção e se completa no nascimento.

Revista Espírita, março de 1858
O doutor Xavier
30. A união da alma, com tal ou tal corpo, está predestinada, ou não é senão no momento do nascimento que a escolha se faz?
"Deus a marcou; essa questão exige mais longos desenvolvimentos. O Espírito, escolhendo a prova que deve suportar, pede a encarnação. Ora, Deus que tudo sabe e tudo vê, sabe e vê antecipadamente que tal alma se unirá a tal corpo. Quando o Espírito nasce nas classes baixas da sociedade, sabe que sua vida não será senão trabalho e sofrimento. A criança que vai nascer tem uma existência que resulta, até certo ponto, da posição de seus pais."

Segunda edição
334. A união da alma, com tal ou tal corpo, é predestinada ou é apenas no último momento que se faz a escolha?
"O Espírito é sempre designado antes. O Espírito, escolhendo a prova que deve suportar, pede a encarnação. Ora, Deus que tudo sabe e tudo vê, sabe e vê antecipadamente que tal alma se unirá a tal corpo."

Outra minuciosa revisão foi feita em um diálogo da primeira edição onde a inclusão de uma única palavra transformou a idéia de que a união se realizaria apenas no nascimento. Observem:

Primeira edição
104. A alma ...
__ O corpo pode existir sem a alma?
"Sim; todavia, desde que cessa a vida do corpo, a alma o abandona. Antes do nascimento, a alma não está nele; não há ainda união entre a alma e o corpo; enquanto que depois que essa união está estabelecida, a morte do corpo rompe os laços que o unem à alma, e a alma o deixa. A vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo privado de vida orgânica."
A alma ...

Segunda edição
136. A alma ...
__ O corpo pode existir sem a alma?
"Sim; todavia, desde que cessa a vida do corpo, a alma o abandona. Antes do nascimento, não há ainda união definitiva entre a alma e o corpo; enquanto que depois que essa união está estabelecida, a morte do corpo rompe os laços que o unem à alma, e a alma o deixa. A vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo privado de vida orgânica."
__ Que ...

Com a palavra 'definitiva' passou-se a ter a idéia de que o espírito de alguma forma já estaria unido ao corpo antes do nascimento. E para completar esta revisão Kardec removeu o trecho 'a alma não está nele'.

Por fim, apenas para registro, colocamos abaixo outros mapeamentos entre esta conversa com o doutor Xavier e alguns diálogos publicados na segunda edição do Livro dos Espíritos:

  • pergunta 22 da conversa com a segunda pergunta do diálogo 155
  • pergunta 27 da conversa com a pergunta do diálogo 355
  • pergunta 31 da conversa com a pergunta do diálogo 209
  • pergunta 32 da conversa com a pergunta do diálogo 210
  • pergunta 33 da conversa com a pergunta do diálogo 891

(*) Conforme se constata pela fotocópia da Revista Espírita de 1858 obtida na Biblioteca Virtual Espírita da Federação Espírita do Paraná.

9 comentários:

Leopoldo Daré disse...

Caro Vital

ficou muito bom sua análise e encaminhamento. Quero acrecentar, que o conceito de reencarnação progressiva (ligação gradual que se completa no nascimento) está indicado por Kardec, ao referir-se sobre uma comunicação com o Espírito do Dr. Olivier (em relatório das reuniões da Sociedade de Paris). Infelizmente Kardec não publicou esta comunicação, apesar de ter garantido que o faria. O conteúdo aparece diretamente na segunda edição de O Livro dos Espíritos.
Este exemplo demonstra o trabalho de equipe da Sociedade de Paris, que fornece dados para Kardec, e também que Kardec não se satisfez com as respostas publicadas na primeira edição, manteve sua busca. Ao encontrar uma mensagem mais coerente, a utiliza. Ao mesmo tempo, não abandona totalmente as informações das mensagens anteriores, na verdade as funde, na busca de uma lógica da verdade através das contradições.

grande abraço

Vital Cruvinel disse...

Que legal, Leo!

Com esta nova comunicação fecha-se a lacuna do processo de transição entre uma idéia e outra. Acredito que esta transição é similar ao da perturbação espírita no desencarne. Isto é, a partir da observação dos fatos narrados nos diálogos com os espíritos Kardec reformula a teoria espírita. Assim, se antes de reencarnarem os espíritos dizem que sentem uma espécie de perturbação então isto indica que o processo de união se inicia antes do nascimento.

Abraço!

Rafael V. Aroca disse...

Oi Vital, muito boa mesmo sua revisão do assunto. Gostaria apenas de adicionar um trecho do livro "Gestação - Sublime Intercâmbio" do médico pediatra Dr. Ricardo Di Bernardi:

"A união do espírito reencarnante ligando-se diretamente às moléculas físicas, dá-se no momento em que ocorre o grande choque bilógico: o espermatozóite penetra no interior do óvulo"

Ao longo do livro ele detalha um pouco mais, dizendo que embora seja neste momento que a ligação é feita, esta ligação é muito fraca, e vai se fortalendo aos poucos até que é terminada por completo no momento do nascimento, como comentado pelo Leopoldo.

Vital Cruvinel disse...

Legal Rafa!

Esta é exatamente a idéia que prevaleceu após as várias observações que Kardec fez a partir dos novos diálogos com os espíritos.

E, com certeza, a união se iniciando na concepção e se completando no nascimento faz muito mais sentido do que uma união abrupta somente no nascimento.

Isto vem corroborar nossa hispótese de que a elaboração da nova edição é permeada pela gradualidade nos processos da vida.

Grande abraço!

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Oi Vital,

Foi bom você ter feito esta investigação. Afinal, desde que me interessei pelo tema das pesquisas com células-tronco embrionárias, me vi às voltas com posicionamentos contrários que se apoiam na idéia de que mesmo nos tubos de ensaio, na medida que há óvulos fecundados, há também vínculos espírituais, isto é, almas congeladas.
Pode ser, não sei, quem sou para dizer que sim ou que não, mas seja como for, é evidente, pelo que você expôs, que Allan Kardec, contando com a colaboração de inúmeros médiuns e com o amparo da espiritualidade superior, levou anos para fazer e refazer as perguntas e respostas que modificou em seguidas publicações. E, neste sentido, percebe-se que a ele cabe a maior parte da responsabilidade sobre a doutrina que produziu.
Não tenho dúvida de que, como tudo, a vinculação entre corpo e espírito é progressiva. Também creio ser uma obviedade o fato de que a interrupção de uma gravidez, em qualquer estágio que seja, significa o impedir que um espírito faça uma experiência reencarnatória. No entanto vejo que aí estão envolvidas variáveis inúmeras e complexas que requerem análise circunstanciada para se definir a ilicitude ou não da interrupção de uma gravidez. Tratar todos os casos indiferenciadamente como crime pode satisfazer ao instinto primário de vingança que as criaturas humanas carregam, mas não contribui para que relações lúcidas e justas se estabeleçam.
Não sou a favor do aborto e nem do uso e destruição de embriões congelados, mas sinto que devo respeitar que decide agir assim. Cada um de nós tem seus motivos, suas expectativas e todos devem ser respeitados em suas escolhas. Mais útil do que lançar anátemas contra pesquisadores que usam células-tronco embrionárias e mulheres que particam aborto será cuidar de enfrentar o desafio político de equacionar a questão da fome que atinge 800 milhões de pessoas, ou da miséria relativa que atinge 3,5 bilhões. Talvez se o planeta for socielamente menos mesquinho e as doenças e deformidades forem tratadas de forma mais competente, não haja motivos para destruir embriões. Creio que Allan Kardec ficou nos devendo alguma coisa neste sentido.

Abraço,

Antonio Baracat

Leopoldo Daré disse...

Boa tarde Baracat!

É um prazer receber sua participação em nosso blog.
Certamente este tema é atualmente extremamente instigante e motivo de muitas disputas argumentativas dentro do movimento espírita brasileiro.
Eu diria que Kardec não ficou devendo, ele fez o que lhe foi possível e interessante na época. Nós é que estamos devendo para nossa sociedade, pois as encruzilhadas e perguntas que os textos kardequianos não conseguem responder sobre células embrionárias e fertilização in vitro são problemas novos, são angústias de nossa atual sociedade tecnológica do século XXI, não são problemas da sociedade do século XIX.
Coloquemos nossas mãos à obra!
grande abraço

Luciano disse...

Olá Vital! Olá Leo!
Muito bom. Trabalho grandioso! Fica bem evidente, de acordo com o trabalho de vocês, que Kardec "construia" as idéias a partir de opiniões dos espíritos, opiniões da ciência da época e também de seu grupo. Essa confirmação é muito importante na minha opinião, pois assim como os conteúdos da ciência e dos seus amigos na Sociedade de Paris, as respostas dos espíritos são apenas mais pontos de observação.
Sobre essa questão dos embriões, sei que não é o objetivo do blog mas é interessante que quando partimos de fatos temos que rever toda essa teoria. Por exemplo: sabemos hoje que podemos pegar um embrião, em seu estádio de mórula, estando ou não congelado a anos, dividi-lo em unidades de células e produzir, a partir dessas, outras dezenas de embriões (clonagem embrionária). Quantos eram os espíritos ligados a esse embrião inicialmente na concepção?
Abraços!

Vital Cruvinel disse...

Olá Luciano,

É isso mesmo... Kardec considerava todo um conjunto de informações para formular as suas idéias.

Nesta questão dos embriões penso também que tudo deve ser rediscutido. As informações que temos hoje são infinitamente superiores ao que existia no século XIX.

Ao mesmo tempo as comunicações que podem servir de base para estas questões são insuficientes, a meu ver, para validar uma ou outra hipótese.

Talvez de cada 100 comunicações podemos tirar apenas uma relatando o processo de união do espírito ao novo corpo.

Grande abraço!