quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Tudo se encadeia

Um dos pontos capitais para a compreensão da perfectibilidade dos espíritos está no conhecimento de suas origens. Allan Kardec sempre tratou deste ponto e buscou a verdade até o último momento de sua vida na Terra. Da primeira para a segunda edição notamos que algumas dúvidas aparecem em função da sua reflexão sob novos pontos de vistas e da avaliação lógica de todos os ensinamentos e fatos espíritas.

Na sua revisão do tema envolvendo os animais Kardec procurou manter a maioria das perguntas e respostas da primeira edição, mas também procurou retocá-las para dar mais liberdade para novas interpretações. Veja no mapeamento abaixo como a nova edição torna-se menos rígida em relação a possibilidade de um ponto de contato entre a alma do homem e a alma do animal.

Primeira edição
437. Visto que os animais têm uma inteligência que lhes dá uma certa liberdade de ação, há neles um princípio independente da matéria?
"Sim, e que sobrevive ao corpo."
__ Esse princípio conserva a sua individualidade?
"Sim."
__ Esse princípio é uma alma semelhante à do homem?
"Não; a alma do homem é um espírito encarnado; para os animais é também uma alma, se quiserdes, isso depende do sentido que se dá a essa palavra; ela, porém, é sempre inferior à do homem. Há entre a alma, dos animais e a do homem tanta distância como entre a alma do homem e Deus."
__ Os animais ...

Segunda edição
597. Visto que os animais têm uma inteligência que lhes dá uma certa liberdade de ação, há neles um princípio independente da matéria?
"Sim, e que sobrevive ao corpo."
__ Esse princípio é uma alma semelhante à do homem?
"É também uma alma, se quiserdes; isso depende do sentido que se dá a essa palavra; ela, porém, é inferior à do homem. Há entre a alma, dos animais e a do homem tanta distância como entre a alma do homem e Deus."
598. A alma dos animais conserva, depois da morte, sua individualidade e a consciência de si mesma?
"Sua individualidade, sim, mas não a consciência do seu eu. A vida inteligente permanece no estado latente."

A remoção do primeiro trecho da resposta a terceira pergunta do diálogo 437 foi necessária para permitir a associação entre as almas humana e animal. Da mesma forma, a remoção da palavra 'sempre', uma minuciosa revisão, também reflete o oferecimento de uma nova hipótese, a de que a alma do animal pode se igualar a do homem.

Admitida a alma do animal Kardec elabora novas indagações como sobre a liberdade de escolha do corpo pelo animal para a sua próxima encarnação (599) e sobre o estado da alma do animal quando desencarnada (600). Mas, mesmo admitindo esta hipótese parece que ele ainda se mantém preso a idéia de que os animais serão sempre submissos ao homem. Veja, por exemplo, o mapeamento abaixo onde se observa um reforço desta idéia.

Primeira edição
437. Visto que ...
__ Os animais seguem uma lei progressiva como os homens?
"Sim, e é por isso que nos mundos superiores, onde os homens são mais aperfeiçoados, os animais o são também, mas sempre inferiores e submissos ao homem."
__ Nos mundos ... ?

Segunda edição
601. Os animais seguem uma lei progressiva como os homens?
"Sim, e é por isso que nos mundos superiores, onde os homens são mais avançados, os animais o são também, tendo meios de comunicação mais desenvolvidos. Mas eles são sempre inferiores e submissos ao homem; são para ele servidores inteligentes."
Não há nisso nada de extraordinário. Imaginemos nossos animais, os mais inteligentes, o cão, o elefante, o cavalo com uma conformação apropriada aos trabalhos manuais: que não poderiam fazer sob a direção do homem?

De toda forma, é interessante analisar como esta postura firme com relação a inferioridade dos animais induz Kardec a explorar as consequências lógicas desta inferioridade. Ou seja, a admissão desta idéia se contrapõe a equidade no tratamento com as criaturas divinas. Assim, ele apresenta esta reflexão em novos diálogos que sustentam a nova hipótese. É interessante observar que no novo diálogo 604 Kardec não faz propriamente uma pergunta, mas afirma o seu próprio entendimento da questão.

Segunda edição
604. Os animais, mesmo aperfeiçoados nos mundos superiores, sendo sempre inferiores ao homem, resulta que Deus criou seres intelectuais perpetuamente votados à inferioridade, o que parece em desacordo com a unidade de vistas e de progresso que se distingue em todas suas obras.
"Tudo se encadeia na Natureza por laços que não podeis ainda compreender, e as coisas, as mais díspares na aparência, têm pontos de contato que o homem não chegará jamais a compreender no seu estado atual. Ele pode entrevê-los por um esforço de sua inteligência, mas só quando sua inteligência tiver adquirido todo o seu desenvolvimento e estiver isenta dos preconceitos do orgulho e da ignorância, é que ele poderá ver claramente na obra de Deus. Até lá, suas idéias limitadas fazem-no ver as coisas de um ponto de vista mesquinho e restrito. Sabei bem que Deus não pode se contradizer e que tudo, na Natureza, se harmoniza por leis gerais que não se afastam jamais da sublime sabedoria do Criador."
__ A inteligência é assim uma propriedade comum, um ponto de contato, entre a alma dos animais e a do homem?
"Sim, mas os animais não têm senão a inteligência da vida material. No homem, a inteligência dá a vida moral."

Para confirmar que a natureza íntima da alma do animal e a da do homem são constituídas do mesmo elemento inteligente universal, que é o espírito, Kardec formula a seguinte pergunta:

Segunda edição
606. Onde os animais tomam o princípio inteligente que constitui a espécie particular de alma, da qual eles são dotados?
"No elemento inteligente universal."
__ A inteligência do homem e a dos animais emanam então de um princípio único?
"Sem nenhuma dúvida, mas no homem ela recebeu uma elaboração que o eleva acima da do animal."

De todos os diálogos da primeira edição o que mais destoa da nova hipótese é o 127 por ser muito direto quanto a impossibilidade da alma do homem ter passado por corpos não humanos. Aqui Kardec não teve escolha senão a de remover tal diálogo e colocar novos em seu lugar. Vejam:

Primeira edição
127. A alma do homem não teria sido primitivamente o princípio vital de ínfimos seres vivos da criação, que chegou, por uma lei progressiva, até o ser humano, percorrendo os diversos graus da escala orgânica?
"Não! não! homens somos desde natos."
"Tudo progride na sua espécie e em sua essência. O homem não foi jamais outra coisa senão um homem."
Seja qual for a diversidade das existências por que passe o nosso espírito ou nossa alma, elas pertencem todas à espécie humana; seria um erro supor que, por uma lei progressiva, o homem haja passado pelos diferentes graus da escala orgânica para chegar a seu estado atual. Assim, sua alma não foi inicialmente o princípio vital de ínfimos seres vivos da criação que chegou sucessivamente ao grau superior: ao homem.

Segunda edição
607. Foi dito que a alma do homem, em sua origem está no estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e ensaia para a vida (190); onde o Espírito cumpre essa primeira fase?
"Numa série de existências que precedem o período a que chamais humanidade."
__ A alma pareceria, assim, ter sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação?
"Não dissemos que tudo se encadeia na Natureza e tende à unidade? É nesses seres, que estais longe de conhecer totalmente, que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e ensaia para a vida, como dissemos. É, de alguma sorte, um trabalho preparatório, como o da germinação, em seguida ao qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. É então que começa para ele o período de humanidade, e com ele a consciência de seu futuro, a distinção do bem e do mal e a responsabilidade dos seus atos; como depois do período da infância vem o da adolescência, depois da juventude e, enfim, a idade madura. Não há, de resto, nessa origem, nada que deva humilhar o homem. Os grandes gênios são humilhados por terem sido fetos informes no seio de sua mãe: Se alguma coisa deve humilhá-lo é a sua inferioridade diante de Deus e sua impotência para sondar a profundeza dos seus desígnios e a sabedoria das leis que regem a harmonia do Universo. Reconhecei a grandeza de Deus nessa harmonia admirável que torna tudo solidário na Natureza. Crer que Deus haja feito alguma coisa sem objetivo e criado seres inteligentes sem futuro, seria blasfemar contra a sua bondade, que se estende sobre todas as suas criaturas."
__ Esse período ... ?

Abrindo um parêntese nesta comparação das duas edições é oportuno destacar alguns artigos publicados na Revista Espírita (*) que dão suporte a idéia de que tudo se encadeia na Natureza. Vejam, por exemplo, o fragmento de um poema espírita escrito pelo senhor de Porry que mais tarde seria aproveitado por Léon Denis.

Revista Espírita, novembro de 1859
Urânia
Mas o Verbo jorra de sua Onipotência,
Dele se destaca e se move em sua própria existência,
Sem cessar ele se transforma e jamais perece;
Do inerte metal se elevando ao Espírito,
O Verbo criador na planta dormita,
Sonha no animal, e no homem desperta

Assim, admitida a hipótese de que os espíritos não são criados na fase humana, mas antes dela, Kardec formula mais duas perguntas (608 e 609) sobre as lembranças e a conservação dos traços das existências do período anterior a humanidade. E, concluindo a seção, Kardec formula uma última pergunta reconhecendo implicitamente a existência de duas propostas para associação da alma do homem a do animal. Mas, ainda aqui, a resposta atribuída ao Espírito vem no sentido de tentar uma síntese possível entre elas. Vejam:

Primeira edição
37. A diferença entre o homem e os animais não consistiria apenas no desenvolvimento das faculdades?
"Não, acabamos de dizê-lo; o homem é um ser à parte; seu corpo apodrece tal qual o dos animais, é certo, mas seu espírito tem outro destino que só ele pode compreender."
As faculdades que o homem possui como suas, pela exclusão de todos os seres vivos, atestam em sua pessoa a existência de um princípio superior à vitalidade, ao instinto, à inteligência dos animais. É o princípio que lhe dá inteligência moral e sentimento de seu destino futuro.

Segunda edição
610. Os Espíritos que disseram que o homem é um ser à parte na ordem da criação, enganaram-se?
"Não, mas a questão não foi desenvolvida e, aliás, há coisas que não podem chegar senão em seu tempo. O homem é, com efeito, um ser à parte, porque ele tem faculdades que o distinguem de todos os outros e tem um outro destino. A espécie humana é aquela que Deus escolheu para a encarnação dos seres que podem conhecê-lo."

A partir destas observações é possível concluir que Kardec pretendeu apresentar uma nova hipótese sem, contudo, abdicar da antiga. Isto se torna mais claro nos comentários finais do capítulo após o diálogo 613. Observem que, na sua conclusão, Kardec expõe as duas hipóteses sem demonstrar preferência e, logo em seguida, acrescenta uma série de perguntas demonstrando que a questão está aberta.

Segunda edição
613. ... Os próprios Espíritos, estão longe de conhecerem tudo; sobre o que eles não sabem, podem também ter opiniões pessoais mais ou menos sensatas.
É assim, por exemplo, que todos não pensam a mesma coisa com respeito às relações que existem entre o homem e os animais. Segundo alguns, o Espírito não alcança o período de humanidade senão depois de ser elaborado e individualizado nos diferentes graus dos seres inferiores da criação. Segundo outros, o Espírito do homem teria sempre pertencido à raça humana, sem passar pela experiência animal.
...
Qual é a origem do Espírito? Onde está seu ponto de partida? Ele se forma de um princípio inteligente individualizado? É isso um mistério que seria inútil procurar penetrar e sobre o qual, como dissemos, não se pode senão construir sistemas. O que é constante e que resulta por sua vez do raciocínio e da experiência, é a osbrevivência do Espírito, a conservação da sua individualidade depois da morte, sua faculdade progressiva, seu estado feliz ou infeliz, proporcionais ao seu adiantamento no caminho do bem, e todas as verdades morais que são a consequência desse princípio. Quanto às relações misteriosas que existem entre o homem e os animais, repetimos, isso está nos segredos de Deus, como muitas outras coisas, cujo conhecimento atual não importa ao nosso adiantamento e sobre as quais seria inútil insistir.

É interessante notar ainda que Kardec destaca a palavra 'atual' na última frase do seu comentário indicando que ele continuaria sua busca da verdade apoiada num possível consenso entre os espíritos. Aparentemente, Kardec não conseguiu encontrá-la e as hipóteses acabaram ficando no inventário. Para ilustrar isto, vejam como Kardec trata a questão quatro anos após a publicação da segunda edição do Livro.

Revista Espírita, março de 1864
Da perfeição dos seres criados
...
A questão dos animais pede alguns desenvolvimentos. Eles têm um princípio inteligente, isto é incontestável. De que natureza é esse princípio? Que relações tem com o do homem? É estacionário em cada espécie, ou progressivo passando de uma espécie à outra? Qual é para ele o limite do progresso? Caminha paralelamente ao homem, ou bem é o mesmo princípio que se elabora e ensaia a vida nas espécies inferiores, para receber mais tarde novas faculdades e sofrer a transformação humana? São tantas questões que ficaram insolúveis até este dia, e se o véu que cobre esse mistério não foi ainda levantado pelos Espíritos, é que isso teria sido prematuro: o homem não está ainda maduro para receber tanta luz. Vários Espíritos deram, isto é verdade, teorias a esse respeito, mas nenhuma tem um caráter bastante autêntico para ser aceita como verdade definitiva; não se podem, pois, considerá-las, até nova ordem, senão como sistemas individuais. Só a concordância pode dar-lhes uma consagração, porque aí está o único e verdadeiro controle do ensino dos Espíritos. ... Tal não é ainda o caso da questão dos animais, é porque não resolvemos o dilema; até constatação mais séria, não é preciso aceitar teorias que podem ser dadas a esse respeito senão em benefício de inventário, e à espera da confirmação ou da negação.
(*) Alguns artigos envolvendo a questão animal publicados na Revista Espírita nos anos de 1858 e 1859: Júpiter e alguns outros mundos (março de 1858), Bemard Palissy (abril de 1858), As habitações do planeta Júpiter (agosto de 1858), Morte de cinco crianças por um menino de 12 anos (outubro de 1858), Da pluralidade das existências (novembro de 1858), Senhor de Humboldt (junho de 1859), Urânia (novembro de 1859), Doutrina da reencarnação entre os Hindus (dezembro de 1859)

Um comentário:

Leopoldo Daré disse...

Caro Vital

Quero destacar que as teorias apresentadas e discutidas por Kardec indicam a possibilidade de uma evolução do espírito - Princípio Inteligente (Espírito individualizado ou não)do animal para o Homem, mas não do vegetal até o Homem. Kardec aceita que não tem condições de optar entre as diferentes propostas, mantém aberta para o desenvolvimento futuro do Espiritismo.
A idéia evolucionista era forte na época de Kardec. Em 1859 Darwin lançar seu primeiro livro sobre as evoluções das espécies e este tornou-se um best-seller muito maior do que O Livro dos Espíritos.
Nesta discussão temos o confronto do modelo evolutivo: é necessário ser uma escada única, um caminho quase linear, ou é possível termos uma evolução em bifurcações como uma árvore ou uma rede? Qual é o critério de bondade divina mais adequado: a fraternidade na diversidade ou a unidade igualitária do fim único? E como unir a fraternidade da diversidade com a proposta evolucionista?
Sobre as fontes de comunicações sobre evolução, acrescento um comentário sobre a entrevista publicada na Revista Espírita 1859, Junho, Conversas Familiares de Além-Túmulo, Sr. Humboldt: a pergunta 33 foi aproveitada na segunda edição d'O Livro dos Espíritos, pergunta 589, e apresenta a frase "tudo é transição na Natureza".

abraços amigo