quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Benefício de inventário


Allan Kardec sempre foi muito prudente na exposição dos ensinamentos espíritas. E a medida que o seu trabalho crescia lhe trazendo um maior volume de informações então ele se tornava ainda mais prudente. E esta prudência se observa no caráter mais geral que ele deu a sua nova edição do Livro dos Espíritos.

Ainda no nascimento da filosofia espírita havia um grande interesse, ou mesmo curiosidade, sobre a pluralidade dos mundos habitados. Dessa forma, nos primeiros anos da publicação da Revista Espírita conta-se um grande número de artigos relatando a vida nestes mundos (*).

Por exemplo, em março de 1858, Kardec publica o artigo 'Júpiter e alguns outros mundos' e, após uma introdução sobre a lógica da existência de outros mundos, ele passa a descrevê-los e classificá-los. Mas, sem antes anotar uma importante ressalva:

Revista Espírita, março de 1858
Júpiter e alguns outros mundos
(...) O que dá aqui, um certo peso ao dizer dos Espíritos, é a correlação que existe entre eles, pelo menos nos pontos principais. Para nós, que fomos cem vezes testemunhas dessas comunicações, que pudemos apreciá-las em seus menores detalhes, que nelas escrutamos o forte e o fraco, observamos as semelhanças e as contradições, encontramos todos os caracteres da probabilidade; todavia, não lhes damos senão sob benefício de inventário, a título de notícias, aos quais cada um está livre para ligar a importância que julga adequada.

Ou seja, as informações detalhadas que Kardec passa a relatar após esta ressalva não podem ser encaradas como um ensinamento definitivo, isto é, deve ser considerado como uma hipótese. E, na opinião de Kardec, uma hipótese provável, embora, devamos nos lembrar que o conhecimento científico de sua época sobre astronomia era muito inferior ao nosso.

Por exemplo, Kardec apresenta Marte como um planeta "menos avançado do que a Terra e os Espíritos que nele estão encarnados pareceriam pertencer, quase exclusivamente, à nona classe, a dos Espíritos impuros". É interessante observar que Kardec associa o mundo menos avançado com a última classe de espíritos da sua escala espírita (que até então era composta por nove classes).

Veja no mapeamento entre a nota 3 da primeira edição do Livro e este artigo da Revista como Kardec dá mais detalhes sobre os planetas do nosso sistema solar.

Primeira edição, nota 3
Segundo os espíritos, de todos os globos que compõem nosso sistema planetário, a Terra é um daqueles cujos habitantes estão menos adiantados fisicamente e moralmente. Marte seria ainda inferior. Poderiam ser classificados na seguinte ordem, começando-se pelo últmo grau: Marte e vários outros pequenos globos, a Terra, (Mercúrio, Saturno), (a Lua, Vênus), (Juno, Urano), Júpiter, sem contar, ocioso seria dizê-lo, os milhares de mundos desconhecidos que compõem outros turbilhões, em meio aos quais existem outros muito superiores ainda.

Revista Espírita, março de 1858 Júpiter e alguns outros mundos Segundo os Espíritos, o planeta Marte seria ainda menos avançado do que a Terra; os Espíritos que nele estão encarnados pareceriam pertencer, quase exclusivamente, à nona classe, a dos Espíritos impuros ... Vários outros pequenos globos estão, com algumas nuanças, na mesma categoria. A Terra viria em seguida ... Mercúrio e Saturno vêm depois da Terra. A superioridade numérica de bons Espíritos lhes dá a preponderância sobre os Espíritos inferiores ... A Lua e Vênus estão quase no mesmo grau e, sob todos os aspectos, mais avançados do que Mercúrio e Saturno. Juno e Urano seriam ainda superiores a esses últimos. Pode-se supor que os elementos morais, desses dois planetas, são formados das primeiras classes da terceira ordem e, na grande maioria, de Espíritos da segunda ordem.
De todos os planetas, o mais avançado, sob todos os aspectos, é Júpiter. Ali, é o reino exclusivo do bem e da justiça, porque não há senão bons Espíritos.

Além de reproduzir a classificação dos mundos, Kardec avança nos detalhes atribuindo a eles a classe de espíritos apropriada. É interessante notar ainda que não só planetas são considerados como morada dos espíritos encarnados, mas também "vários pequenos globos". Aliás, um destes é Juno que, na verdade, é um pequeno asteróide descoberto em 1804, coincidentemente um mês antes do nascimento de Kardec.

Alguns meses após a publicação dos desenhos de Júpiter feitos por intermédio de Victorien Sardou, Kardec publica um artigo relativizando a importância destas informações sobre outros mundos. Vejam:

Revista Espírita, agosto de 1858 Observações a propósito dos desenhos de Júpiter ... Supondo mesmo que esse desenho seja uma fantasia do Espírito que o traçou, só o fato de sua execução não seria um fenômeno de menor atenção, e, a esse título, cabe a nossa coletânea dar a conhecê-lo, assim omo a descrição que, sobre ele, foi dada pelos Espíritos, não para satisfazer a vã curiosidade de pessoas fúteis, mas como assunto de estudo para pessoas sérias, que querem aprofundar todos os mistérios da ciência espírita. Estar-se-ia em erro crendo que fazemos da revelação de mundos desconhecidos o objeto capital da Doutrina; isso não será sempre, para nós, senão um acessório, mas um acessório que cremos útil como complemento de estudo; o principal será sempre, para nós, o ensinamento moral, e, nas comunicações de além-túmulo, procuramos sobretudo o que pode esclarecer a Humanidade e conduzi-la para o bem, único meio de assegurar sua felicidade neste mundo e no outro.

Assim, sob o benefício de inventário e para dar um caráter mais geral ao ensinamento, Kardec reformula a sua nota sobre os mundos. Comparem com a antiga:

Segunda edição, nota do diálogo 188
Segundo os Espíritos, de todos os globos que compõem nosso sistema planetário, a Terra é um daqueles cujos habitantes estão menos adiantados fisicamente e moralmente. Marte seria ainda inferior e Júpiter, o mais superior em relação a todos. O Sol não seria um mundo habitado por seres corporais, mas um local de reunião dos Espíritos superiores que, de lá, irradiam seus pensamentos para outros mundos, que dirigem por intermédio dos Espíritos menos elevados, transmitindo-os a estes, por intermédio do fluido universal. Como constituição física, o Sol seria um foco de eletricidade. Todos os sóis parecem estar numa posição idêntica.
O volume e a distância que estão do Sol não têm nenhuma relação necessária com o grau de adiantamento dos mundos, pois parece que Vênus é mais adiantado que a Terra, e Saturno menos adiantado que Júpiter.

Nesta nova edição Kardec é mais cuidadoso e escolhe o verbo 'parece' para especificar o grau de adiantamento de outros planetas como Vênus e Saturno. Aliás, comparando com a primeira edição parece ter havido uma troca de posições entre estes dois planetas.

Para completar esta análise reproduzimos abaixo o último parágrafo da nota na primeira edição que foi descartado na nova edição. Notamos que Kardec passou a evitar a associação da nova filosofia espírita com as antigas crenças mitológicas.

Primeira edição, nota 3
As crenças mitológicas se fundaram na existência de seres superiores à humanidade, mas tendo ainda algumas de suas paixões. Figuravam-nas com os dons de presciência e penetração do pensamento e corpos menos densos que os nossos, transportando-se através do espaço e nutrindo-se de néctar e ambrosia, isto é, de alimentos menos substanciais e menos grosseiros que as dos mortais. Estes seres sobrenaturais, que haviam vivido entre os homens, e ainda se ocupavam da boa ou má sorte destes, seriam apenas produto da imaginação? Não. Acabamos de os encontrar nos habitantes dos mundos superiores; somente, os antigos faziam deles divindades, que eles adoravam como o selvagem adora o que está acima de si. Os espíritos no-los mostram como simples criaturas que atingiram certo grau de perfeição física, moral e intelectual. Eles se manifestavam sobre a Terra como os espíritos se manifestam hoje a nós; os oráculos e sibilas eram médiuns que lhes serviam de intérpretes. A intuição desses seres superiores à nossa Humanidade não se extinguiu com o paganismo; encontramo-los mais tarde sob nomes de fadas, gênios, silfos, willis, houris, gnomos, espíritos familiares.

(*) Indicamos algumas das mensagens obtidas por Kardec de espíritos que se disseram encarnados (ou que iriam reencarnar) em outros mundos: notas 13 e 15 da primeira edição do Livro dos Espíritos e artigos da Revista Espírita, a saber, Senhorita Clary D (fevereiro de 1858), Bernard Pallissy (abril de 1858), Mozart (maio de 1858), A senhora Schwabenhaus (setembro de 1858), O doutor Muhr (novembro de 1858), Chaudruc Duelos e Diógenes (janeiro de 1859), Hitoti, chefe taitiano (março de 1859), Senhor de Humboldt e Goéthe (junho de 1859), O general Hoche (setembro de 1859), Privat d'Anglemont (dezembro de 1859).

3 comentários:

Leopoldo Daré disse...

Boa noite Vital!

As explicações sobre os astros sempre esteve no campo da religião e da filosofia. Apenas muito recentemente a Física e a Astronomia assumiram a proa da primazia do saber sobre estes temas. É interessante notar que na época de Kardec ainda não havia esta ditadura do conhecimento científico.
Acho interessante lembrar que Kardec continua desenvolvendo este tema, o que resultará na publicação de "A Gênese".
Importante notar que esta classificação dos planetas parece puco provável atualmente. Exatamente devido as informações da Astronomia, que apesar de poucas são consistentemente contrárias a esta proposta espírita kardequiana. E é interessante notar que os espíritas mantêm-se afastados do debate sobre esta contradição com os achados das ciências contemporâneas.
Importantíssimo destacar a afirmativa de Kardec sobre a maior confiabilidade do Espiritismo em temas morais do que científicos (que você destaca neste artigo e há outros textos de Kardec sobre este mesmo ponto).

abraços

Vital Cruvinel disse...

É verdade, Leo!

Uma das hipóteses que vejo para que os espíritas se afastem do debate está na crença de que as comunicações obtidas por Kardec são ou deveriam ser infáliveis. Imagino que muitos não admitem erros científicos pontuais sob pena de terem que reavaliar todos os ensinamentos espíritas. Dessa forma, preferem se abster das discussões.

Abraços!

Angelo disse...

Seus artigos são ótimos. Também gosto de aprofundar aquilo que muitos espíritas deixam passar por medo de perderem as próprias convicções.

Quanto às ideias e supostas revelações trazidas por Espiritos a Kardec, exponho aqui a opinião de Marcelo da Luz em seu livro "Onde a Religião Termina?" no capítulo em que ele trata do Espiritismo:

"No caso do Espiritismo, os médiuns se comunicam com as dimensões extrafísicas PARATROPOSFÉRICAS [dimensões próximas ao nosso plano físico] e prestam assistência às consciências desencarnadas enfermiças, contando com o auxílio de outras mais fraternas. Contudo, deixam-se SEDUZIR pelas crenças dessas consciências, as quais ainda estão PRESAS AO PENSAMENTO RELIGIOSO CRISTÃO. Os "Espíritos bons", "seres de luz", "trabalhadores desencarnados do bem", descritos na literatura espírita, são consciências inegavelmente bem intencionadas e situadas em nível evolutivo superior àquele dos PARAPSICÓTICOS aos quais buscam ajudar (muitas vezes em razão de profundas ligações GRUPOCÁRMICAS). Porém, estão ainda aferradas às representações dogmáticas cristãs, fator restritivo à apreciação mais ampla de si mesmas e do Universo. Exemplos bem conhecidos na literatura espírita são os Espíritos André Luiz e Emmanuel, auxiliares extrafísicos de Chico Xavier. O religiosismo cristão os torna ainda GUIAS AMAURÓTICOS (ou Cegos), isto é, assumem a doutrina cristã como "A verdade absoluta" para todos. Faz-se necessário, portanto, aplicar o PRINCÍPIO DA DESCRENÇA aos discursos e orientações dessas consciências, tratando-as com o máximo de fraternismo, sem a pieguice e devota subserviência dos crentes genuflexos."