domingo, 4 de janeiro de 2009

Alma, causa, efeito

O livre arbítrio, ou liberdade de ação, constitui-se numa premissa dos ensinamentos espíritas embora esta liberdade possa ser entravada por motivos alheios ao espírito. Allan Kardec se preocupava com estes entraves e, por isso, fez uma série de perguntas sobre eles já na primeira edição do Livro dos Espíritos.

Um destes possíveis entraves pode estar nas predisposições que o homem carregaria a cada encarnação. Mas estas predisposições podem ser alheias ou não ao espírito, isto é, podem ser físicas ou espirituais. Vejam no mapeamento abaixo como a predisposição ao assassínio foi visto na primeira edição como algo alheio ao espírito:

Primeira edição
433. O homem traz consigo ao nascer, por sua organização física, uma predisposição para tal ou tais atos?
"Sim."
__ A predisposição natural que traz o homem para certos atos lhe tira seu livre arbítrio?
"Não, pois foi ele mesmo quem pediu para ter esta ou aquela predisposição. Se pediste para ter as disposições do assassínio, foi para teres que lutar contra esta propensão."
__ Pode o homem superar todas as suas tendências, por mais fortes que sejam?
"Sim, querer é poder."
A organização física do ser humano o predispõe a tal ou tais atos aos quais é impelido por uma força por assim dizer instintiva. Este pendor natural, se o conduzir ao mal, poderá tornar-lhe o bem mais difícil, não porém lhe tira a liberdade de fazer ou deixar de fazer. Com uma firme vontade e a ajuda de Deus, se ele rezar com fervor e sinceridade, não haverá propensão que ele não possa superar, por mais veemente que ela seja. O homem não poderia pois buscar uma excusa em sua organização sem abdicar a sua razão e a condição de ser humano, para se assemelhar ao animal.

Segunda edição
845. As predisposições instintivas que o homem traz ao nascer, não são um obstáculo ao exercício do livre arbítrio?
"As predisposições instintivas são as do Espírito antes da sua encarnação. Conforme for ele mais ou menos avançado, elas podem solicitá-lo para atos repreensíveis, e ele será secundado nisso pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições, mas não há arrebatamento irresistível, quando se tem a vontade de resistir. Lembrai-vos de que querer é poder." (361)

Agora, observem no próximo mapeamento como o instinto do assassínio é visto na segunda edição como algo inerente ao espírito.

Primeira edição
440. O livre arbítrio não fica também subordinado à organização física, e não pode ficar entravado em certos casos pela predominância do organismo?
"O livre arbítrio pode ficar entravado, mas não anulado; aquele que anula seu pensamento para não se ocupar senão com a matéria, torna-se semelhante ao bruto, e pior ainda, ele nem sonha mais em precaver contra o mal, e é nisto que é culpado."
O espírito, despojado da carne, faz opção de suas existências carnais futuras segundo o grau de apuramento ao qual haja chegado, e é nessa escolha, como já o havemos dito, que consiste sobretudo o livre arbítrio. O arbítrio não fica anulado pela encarnação; se ele cede à influência do organismo é porque sucumbe ao peso das próprias provas que escolheu, e é para o auxiliar a sobrepujá-las que pode invocar a assistência dos bons espíritos.

Segunda edição
846. O organismo não exerce influência sobre os atos da vida? Se ele exerce influência, não o faz com prejuízo do livre arbítrio?
"O Espírito, certamente, é influenciado pela matéria que o pode entravar em suas manifestações. Eis porque, nos mundos onde os corpos são menos materiais que sobre a Terra, as faculdades se desdobram com mais liberdade, mas o instrumento não dá a faculdade. De resto, é preciso distinguir aqui as faculdades morais das faculdades intelectuais; se um homem tem o instinto do assassínio, é seguramente seu Espírito que o possui e que lho transmite, mas não seus órgãos. Aquele que anula seu pensamento para não se ocupar senão com a matéria, torna-se semelhante ao bruto, e pior ainda, ele nem sonha mais em precaver contra o mal, e é nisto que é culpado, visto que age assim por sua vontade." (vede n 367 e seguintes. Influência do organismo).

Vamos observar um novo mapeamento entre alguns comentários de Kardec e constatar a remoção da possibilidade de escolha de um corpo com predisposições para o crime.

Primeira edição, Nota XV - comentários
A questão do livre arbítrio e da fatalidade não podia ser melhor elucidada do que foi por essa comunicação. Ela pode ser resumida assim: o homem não é fatalmente conduzido ao mal; os atos que ele realiza não estão antecipadamente escritos; os crimes que ele comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, como prova e como expiação, escolher uma existência em que terá os arrastamentos do crime, seja pelo meio em que está colocado, seja pelas circunstâncias que sobrevirão, seja enfim pela organização mesma do corpo que lhe pode dar tal ou qual predisposição; mas está sempre livre para fazer ou não fazer. ...

Segunda edição, Resumo teórico da motivação das ações do homem
872. A questão do livre arbítrio pode ser resumida assim; o homem não é fatalmente conduzido ao mal; os atos que ele realiza não estão antecipadamente escritos; os crimes que ele comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, como prova e como expiação, escolher uma existência em que terá os arrastamentos do crime, seja pelo meio em que está colocado, seja pelas circunstâncias que sobrevirão, mas está sempre livre para agir ou não agir. ...

Esta mudança não é fortuita, ela parte de uma nova compreensão da influência do organismo sobre o nosso livre arbítrio. E esta nova compreensão está registrada no diálogo 370 da nova edição.

Segunda edição
370. Pode-se deduzir, da influência dos órgãos, uma relação entre o desenvolvimento dos órgãos cerebrais e o desenvolvimento das faculdades morais e intelectuais?
"Não confundais o efeito com a causa. O Espírito tem sempre as faculdades que lhe são próprias; ora, não são os órgãos que dão as faculdades, mas as faculdades que conduzem ao desenvolvimento dos órgãos."
__ Assim sendo a diversidade das aptidões do homem provém unicamente do estado do Espírito?
"Unicamente não é toda a exatidão do fato; as qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos avançado, são o princípio, mas é preciso ter em conta a influência da matéria que entrava, mais ou menos, o exercício dessas faculdades."
O Espírito, se encarnando, traz certas predisposições, admitindo-se, para cada uma, um órgão correspondente no cérebro, o desenvolvimento desses órgãos será um efeito e não uma causa. Se as faculdades se originassem nesses órgãos, o homem seria máquina sem livre arbítrio e sem responsabilidades dos seus atos. ...

Esta nova compreensão parece ter afetado substancialmente a visão de Kardec sobre os ensinamentos espíritas. Isto pode ser verificado pela importância dada a idéia de que a alma é causa e não efeito como se observa na nova redação da introdução. Vejam abaixo as adições efetuadas:

Segunda edição, Introdução
II ... Segundo uns, a alma é o princípio da vida material orgânica. Não tem existência própria e cessa com a vida; é o materialismo puro. ... Segundo essa opinião, a alma seria efeito e não causa.
... Segundo outros, enfim, a alma é um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva sua individualidade após a morte. ... Esta doutrina, segundo a qual a alma é a causa e não o efeito, é a dos espiritualistas.

Em outras oportunidades na nova edição Kardec também vai incluir novos diálogos que estão de acordo com esta nova compreensão... vejam:

Segunda edição
142. Que dizer desta outra teoria segundo a qual a alma, numa criança, se completa a cada período da vida?
"O Espírito é um só, e está inteiro na criança como no adulto. São os órgãos, ou instrumentos de manifestação da alma, que se desenvolvem e se completam. É ainda tomar o efeito pela causa."

366. Que pensar da opinião segundo a qual as diferentes faculdades intelectuais e morais do homem seriam o produto de diferentes Espíritos encarnados nele, e tendo, cada um, uma aptidão especial?
"Refletindo, reconhece-se que é absurda. O Espírito deve ter todas as aptidões; para poder progredir, lhe é necessária uma vontade única. Se o homem fosse um amálgama de Espíritos, essa vontade não existiria e ele não teria individualidade, pois que, em sua morte, esses Espíritos seriam qual um bando de pássaros escapados de uma gaiola. ... Ainda aqui, toma o efeito pela causa. ... "
... As diversas faculdades são manifestações de uma mesma causa que é a alma, ou Espírito encarnado, e não de muitas almas ...

Para finalizar, é interessante registrar a composição do 'Resumo téorico da motivação das ações do homem' colocado sob o número 872 na segunda edição. Este resumo é composto pelos comentários finais da nota XV da primeira edição, pelos comentários dos diálogos 440, 433, e 441, e pelo artigo 'Teoria da motivação de nossas ações' publicado na edição de outubro de 1858 da Revista Espírita.

Vale destacar ainda que neste artigo um dos parágrafos aproveitados para publicação da nova edição é de autoria do médium senhor Roze considerado por Kardec "um dos membros mais eminentes da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas".

2 comentários:

Leopoldo Daré disse...

Caro Vital

Se juntarmos as mudanças no modelo teórico da Reencarnação com as limitações do corpo físico nos atos do Homem, podemos levantar uma proposta (que precisamos conferir com as demais comparações feitas e que serão feitas): na segunda edição há um crescimento da força de influência do Espírito sobre o corpo, apesar de não eliminar a influência do corpo sobre o Espírito.
Diminuindo as contradições da primeira edição, Kardec caminha para um modelo onde os aprendizados das vidas passadas podem ser mais importantes na vida atual.

abraços

Vital Cruvinel disse...

É verdade, Leo.

No caso da reencarnação o espírito não recebe mais um corpo pronto, mas vai moldando-o, ou nas palavras de Kardec, desenvolvendo os órgãos.

Abraço!