quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Um exemplo de diálogo - Parte 3

Na primeira parte deste post apresentamos um diálogo publicado na primeira edição do Livro dos Espíritos entre Kardec e o espírito Théophile Z.. Na segunda parte fizemos uma análise deste diálogo e dos seus dialogadores. Nesta terceira e última parte apresentaremos o que foi aproveitado do diálogo para a nova edição do Livro dos Espíritos e avaliando também a forma como ele foi aproveitado.

O aproveitamento do diálogo para a confecção da nova edição do Livro dos Espíritos se deu principalmente na sua terceira parte (itens de 18 a 26). Mais especificamente, Kardec selecionou as perguntas e respostas dos itens 21, 22, 24, 25, 26 e o seu comentário no item 27. Vamos a eles!

Veja no mapeamento abaixo que a pergunta permanece idêntica, mas a resposta é abreviada cortando-se o seu final.

Primeira edição
21. O homem, por sua vontade e por seus atos, pode fazer com que os acontecimentos que deveriam ocorrer não ocorram, e vice-versa?
__ Ele o pode, desde que esse desvio aparente possa se harmonizar com a vida que escolheu. Ademais, para fazer o bem, como o deve ser, e como isso é o único objetivo da vida, pode impedir o mal, sobretudo aquele que possa contribuir a que um maior se cumpra; porque aqui, como em todos os demais mundos, o progresso é contínuo: Ele não tem absolutamente reincidências.

Segunda edição
860. O homem, por sua vontade e por seus atos, pode fazer com que os acontecimentos que deveriam ocorrer não ocorram, e vice-versa?
__ Ele o pode, desde que esse desvio aparente possa se harmonizar com a vida que escolheu. Ademais, para fazer o bem, como o deve ser, e como isso é o único objetivo da vida, pode impedir o mal, sobretudo aquele que poderia contribuir para um mal maior.

Aparentemente Kardec achou desnecessária a penúltima frase e até mesmo fora de contexto. Ou seja, a idéia de que o progresso é contínuo não tem relação direta com a pergunta. Por sua vez, a última frase 'ele não tem reincidências' carece de sentido e, provavelmente por este motivo, foi descartada. No próximo mapeamento, ao contrário, Kardec acrescenta novas frases desenvolvendo melhor o raciocínio.

Primeira edição
22. Há fatos que devam acontecer forçosamente?
__ Sim, mas que, no estado de espírito, você viu e pressentiu ao fazer sua escolha. Se você queimar um dedo, isso não importa: é conseqüência da matéria. Apenas as grandes dores que influem no seu estado moral são previstas por Deus, visto que são úteis à sua depuração e à sua instrução.

Segunda edição
859. ... Há fatos que devam acontecer forçosamente e que a vontade dos Espíritos não possa evitar?
__ Sim, mas que, no estado de Espírito, você viu e pressentiu ao fazer sua escolha. Entretanto, não creiais que tudo o que ocorre esteja escrito, como se diz. Um acontecimento é, frequentemente, a conseqüência de uma coisa que fizeste por um ato de tua livre vontade, de tal sorte que se não tivesses feito essa coisa, o acontecimento não ocorreria. Se você queimar um dedo, isso não importa: é o resultado de sua imprudência e conseqüência da matéria. Apenas as grandes dores, os acontecimentos importantes que podem influir no seu estado moral são previstas por Deus, visto que são úteis à sua depuração e à sua instrução.

Como a pergunta foi tirada do seu contexto Kardec a desenvolve acrescentando a suposta condição de que nem mesmo os espíritos poderiam alterar o rumo de alguns acontecimentos. Na resposta, antes de dar o exemplo do dedo queimado, Kardec enfatiza a possibilidade, ou mesmo a maior probabilidade, de que normalmente somos responsáveis pelas consequências dos nossos atos.

Mais a frente, ao explicar o exemplo, acrescenta de forma clara que a queima é 'o resultado de sua imprudência'. Explica ainda que as 'grandes dores' são os 'acontecimentos importantes'. E observem no final: estas dores não 'influem' certamente, mas 'podem influir' no seu estado moral. Assim, com esta minuciosa revisão Kardec tira o caráter absoluto da afirmação buscando sempre relativizar e generalizar os seus ensinamentos.

No mapeamento abaixo observamos uma reescrita mais generalizada uma vez que a resposta original do espírito se mostrava pouco clara e até mesmo confusa.

Primeira edição
24. Quem morre assassinado sabia previamente de que gênero de morte iria morrer, e isso pode ser evitado?
__ Quando sabemos antes que vamos morrer assassinado, não sabemos por quem. . . Espera! Digo que nós vamos morrer assassinado; mas sabemos que, se escolhermos uma existência em que vamos ser assassinado, sabemos também das lutas que devemos travar para o evitar, e que, se Deus permitir, não o seremos.

Segunda edição
856. O Espírito sabe previamente o gênero de morte pelo qual deve morrer?
__ Sabe que o gênero de vida que escolheu o expõe a morrer de tal maneira antes que de outra, mas sabe igualmente as lutas que terá de sustentar para o evitar, e que, se Deus o permitir, não sucumbirá.

Já na pergunta Kardec tira o caráter específico da morte por assassinato generalizando para qualquer tipo de morte. As primeiras frases da resposta são descartadas pois são específicas da morte por assassinato além de transmitirem pouca confiança. Em substituição a elas Kardec coloca a questão do ponto de vista da probabilidade e não mais de forma absoluta. E mantém as frases finais, embora sutilmente modificadas, que confirmam esta idéia da probabilidade.

Em seguida vocês poderão observar como faz a diferença uma boa explicação para esclarecer o que se deve compreender sobre o livre arbítrio.

Primeira edição
25. O homem que comete um homicídio sabe, ao escolher a existência, que virá a ser assassino?
__ Não; sabe que, escolhendo uma vida de luta, tem probabilidade de matar um de seus semelhantes; ignora porém se o fará; pois quase sempre houve lutas para ele.

Segunda edição
861. O homem que comete um homicídio sabe, ao escolher a existência, que virá a ser assassino?
__ Não; sabe que, escolhendo uma vida de luta, tem probabilidade de matar um de seus semelhantes; ignora porém se o fará; pois quase sempre há nele uma deliberação antes de cometer o crime. Ora, aquele que delibera sobre uma coisa, está sempre livre para fazê-la, ou não. Se o Espírito sabia, de antemão, que, como homem, devia cometer um homicídio, é que isso estava predestinado. Sabei, pois, que não há ninguém predestinado ao crime e que todo crime, ou todo ato qualquer, é sempre o resultado da vontade e do livre arbítrio.
De resto, confundis sempre duas coisas bem distintas: os acontecimentos materiais da vida e os atos da vida moral. Se, algumas vezes, há fatalidade, é nos acontecimentos materiais cuja causa está fora de vós, e que são independentes da vossa vontade. Quanto aos atos da vida moral, eles emanam sempre do próprio homem, que tem sempre, por conseguinte, a liberdade de escolha; para esses atos, pois, jamais há fatalidade.

Observem que Kardec refaz a redação da última frase da resposta do espírito dando a ela uma maior coerência e acrescenta uma extensa explicação sobre o livre arbítrio enfatizando que ele é soberano especialmente 'nos atos da vida moral'.

No próximo mapeamento Kardec refaz a redação da pergunta e remodela a resposta. Observem que, embora textualmente diferentes, ambas redações possuem a mesma essência.

Primeira edição
26. Por que não devemos conhecer a natureza e o tempo dos acontecimentos futuros?
__ A fim de que se dêem quando Deus quiser, e, ignorando-os, você trabalhe com zelo; devemos concorrer para eles, mesmo para os adversos. Se soubesse que algo deva acontecer em seis meses por exemplo, diria: Nada posso fazer, porque vai acontecer em seis meses; e não deve ser assim.

Segunda edição
869. Com que objetivo o futuro está oculto ao homem?
__ Se o homem conhecesse o futuro, negligenciaria o presente e não agiria com a mesma liberdade, porque seria dominado pelo pensamento de que, se uma coisa deve acontecer, não tem que se ocupar dela, ou então, procuraria dificultá-la. Deus não quis que fosse assim, a fim de que cada um concorresse para a realização das coisas, mesmo às quais gostaria de se opor. Assim, tu mesmo, frequentemente, preparas, sem desconfiar disso, os acontecimentos que sobrevirão no curso da tua vida.

Finalmente, Kardec reaproveita seu próprio comentário na primeira edição para iniciar o seu 'resumo teórico da motivação das ações do homem' no item 872 da nova edição.

Primeira edição
27. A questão do livre arbítrio e fatalidade não podia ser melhor elucidada do que foi por essa comunicação. Ela pode ser resumida assim: O homem não é fatalmente conduzido ao mal; os atos que pratica não estão escritos antecipadamente; os crimes que comete não são o resultado de uma decisão do destino. Pode, como provação ou como expiação, escolher uma vida em que tenha atrativos do crime, seja pelo meio em que se ache colocado ou por circunstâncias que surjam, seja pela organização mesma do corpo que lhe pode dar tal ou qual predisposição; mas tem sempre a liberdade de fazer ou não fazer. Assim, o livre arbítrio existe no estado de espírito na escolha da vida e das provas, e, no estado corporal, em ceder ou resistir aos arrastamentos a que somos voluntariamente submetidos. Compete à educação combater essas más tendências; ela será útil quando baseada em um estudo aprofundado da natureza moral do homem. Quando familiarizados com as leis que regem essa natureza moral, modificaremos o caráter como modificamos a inteligência pela instrução, e o temperamento pela saúde.

Segunda edição
872. A questão do livre arbítrio pode ser resumida assim: O homem não é fatalmente conduzido ao mal; os atos que pratica não estão escritos antecipadamente; os crimes que comete não são o resultado de uma decisão do destino. Pode, como provação ou como expiação, escolher uma vida em que tenha atrativos do crime, seja pelo meio em que se ache colocado ou por circunstâncias que surjam, mas tem sempre a liberdade de agir ou não agir. Assim, o livre arbítrio existe no estado de Espírito na escolha da vida e das provas, e, no estado corporal, em ceder ou resistir aos arrastamentos a que somos voluntariamente submetidos. Compete à educação combater essas más tendências; ela será útil quando baseada em um estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la como modificamos a inteligência pela instrução, e o temperamento pela saúde.

Observem que a parte final da primeira frase foi descartada por estar fora de contexto. Outro trecho também foi retirado por transmitir a idéia de que o corpo poderia ser a causa das más condutas do homem. Aliás, esta questão já foi objeto de análise no tópico Alma, causa, efeito.

Enfim, a partir da análise deste diálogo podemos avaliar como funcionava o processo de construção do conhecimento espírita realizado por Kardec. Usando de bom senso e respeito no trato com o seu interlocutor (o espírito comunicante), fazendo as perguntas certas nas horas certas, explorando ao máximo as respostas Kardec retirava do diálogo o melhor que ele poderia dar.

Na sequência deste processo, após a obtenção do diálogo, Kardec analisava as respostas e lapidava os textos dando uma coerência e clareza necessárias para a divulgação correta do ensinamento. Isto só demonstra o quão importante foi o papel de Kardec na elaboração do conhecimento espírita.

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